Por Raquel Freitag, professora do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Sergipe e pesquisadora associada à Rede CpE

Na era dos memes, dois deles ilustram de forma bem realística os dilemas que vivemos na educação hoje. Um é aquele do anúncio do bolo no pote (um anúncio de bolo no pote em uma rede social, e as perguntas nos comentários sobre informações textualmente dadas). E o outro é o da resposta da questão da prova que pedia que fossem corrigidos os erros do bilhete (mandar áudio). Um outro meme pronto é uma escola em que a tarefa é feita por IA, corrigida por IA, planejada por IA, e assim por diante, num loop infinito, que mecaniza o processo e distancia cada vez mais a escola do seu propósito, a formação cidadã. Uma coisa tipo Another brick in the wall, do Pink Floyd.

A UNESCO publicou recentemente o Marco referencial de competências em IA para professores e estudantes, que tem por objetivo orientar sobre uso adequado e o uso indevido de IA na educação. As competências são categorizadas em três níveis de progressão: Adquirir, Aprofundar e Criar. Todas as diretrizes são muito úteis e bem-vindas. Mas ainda estão diametralmente distantes da maior parte da realidade escolar brasileira, por um motivo: a nossa falha sistemática em leitura, que é um pré-requisito para a leitura crítica tão necessária em um mundo algorítmico.

A leitura é uma prática social, que precisa levar à construção de sentidos e cidadania. Se era papel da escola desenvolver a leitura de textos de diferentes campos do saber, como notícias, artigos de opinião, textos científicos e publicitários, em um cenário em que há cada vez mais dados à disposição em um clique ou captura de tela, precisamos mais do que nunca de leitura automatizada para não cair nas alucinações da IA.

O trabalho sistemático para a compreensão e fluência na leitura precisa ser intensificado para possibilitar a identificação das ideias e temas do texto. Do mesmo modo, o trabalho com estratégias de leitura, para a ativação de conhecimentos prévios, antecipação e inferência, é essencial para transformar dados em informações e permitir explorar as relações entre textos.

O trabalho com habilidades específicas, como localizar e interpretar informações explícitas e implícitas em um texto, estabelecer relações lógicas e argumentativas, inferir efeitos de sentido e intenções, comparar versões de um mesmo fato em diferentes mídias, dentre outros, sai do nível do texto escrito e adentra no nível multimodal, com imagens, vídeos, áudios, ao mesmo tempo, cada vez mais presentes nos produtos de IA generativa que entram em nosso cotidiano. Se antes era o ChatGPT, agora até o buscador do Google já “interpreta” as informações. Precisamos de leitura automatizada para superar os memes.

Mas a mesma IA que é inacessível e inadequada para quem não domina a leitura pode se transformar em aliada da escola para alcançar os resultados de sucesso em leitura. O trabalho de adaptação personalizada de textos, ajustando o nível de dificuldade conforme o desempenho de cada estudante em termos de complexidade gramatical e diversidade de repertório vocabular, pode ajudar no desenvolvimento da compreensão leitora.
As estratégias metacognitivas da leitura podem também ser desenvolvidas por meio do uso supervisionado de IA, como, por exemplo, pedindo para que a IA prepare um texto e registre o tempo levado para leitura. Essa atividade permite que os estudantes avaliem e reflitam sobre seus próprios processos leitores e ajustem suas estratégias.
Precisamos, mais do que nunca, de leitura crítica de conteúdos gerados por IA. A habilidade de inferir sentidos, detectar vieses e avaliar a confiabilidade de informações torna-se ainda mais essencial com a presença de textos gerados por IA. Ela pode ser nossa aliada neste processo. O que não podemos é deixar a leitura virar meme.

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